Falo nos direitos básicos mencionados acima. São eles que dão o fundamentos para a ação política efetiva, para a cidadania efetiva, não súdita. São eles que dão sentido à prática dos direitos políticos. Sem eles, o voto, mesmo generalizado, permanece praticamente classicista, ou apenas ritualista. Não há direito novo a ser conquistado. Nosso problema emana questão dos direitos que é semelhante ao que se coloca no caso da educação e da riqueza. Eles se concentram em parcela pequena da população, entre os “doutores”, que até hoje são desiguais até na cadeia. Nosso Estado-Nação falhou na tarefa básica cumprida em outros países de reduzir as grandes desigualdades de riqueza, educação e direitos.
Num ambiente de recessão, endividamento crescente e neoliberalismo, como garantir a manutenção dos direitos sociais sem quebrar financeiramente o Estado?
Trata-se de mais um agravante de nosso predicamento. Uma coisa é a crise do Estado de bem-estar em países com níveis aceitáveis de desigualdade e alta escolaridade. Outra é a mesma crise em um país com 50 milhões de indigentes e igual número de analfabetos funcionais. O forte, em nosso percurso, eram os direitos sociais. São eles, no momento, os mais ameaçados.
Qual é o período de maior conquista para os cidadãos brasileiros? Por quê?
Apesar de tudo, acho que o momento de maior avanço é o atual, pós-1988. Embora ainda sem muita eficácia, os direitos políticos se generalizaram, as instituições representativas funcionam, pelo menos formalmente. Na educação fundamental tem havido algum progresso. O movimento de organizações civis tem crescido e aumentado sua intervenção na vida social. Mas tudo ainda é muito lento diante do tempo perdido.
Por que o senhor vê positivamente o papel do MST?
Porque incorpora, e de maneira ativa, não-cooptada, importante setor de marginalizados na vida econômica e política. A mera existência do MST é uma vergonha para o país, que chega ao século 21 sem resolver o problema do simples registro de terras, sem falar de sua distribuição. Ainda hoje o Incra desapropria fazendas inexistentes. Pergunto-me o que acontecerá se os milhões de marginalizados das grandes cidades conseguirem organizar-se da mesma maneira que os sem-terra. Se o sistema tem dificuldades em lidar com o MST, o que dizer diante de uma eventual movimentação dos 50 milhões de pobres? Ou de uma provável expansão de organizações do tipo do Comando Vermelho e do PCC?
Itamar e Garotinho são mostras do retorno, da permanência ou da decadência dos líderes messiânicos?
Da sobrevivência. Tudo o que precede indica que ainda há espaço em nossa sociedade para esse tipo de liderança, assim como para a de chefes políticos clientelistas como Maluf e ACM. A tradição de messianismo, a crença em figuras salvadoras, têm raízes profundas. A incapacidade de nossa democracia política em reduzir os índices de desigualdade, e a desigualdade em si, é caldo de cultura para o messianismo.
Do ponto de vista da cidadania, como o senhor analisaria a conjuntura de crise energética, crise de popularidade do Executivo, acusações contra o presidente do Senado e candidaturas de oposição liderando as pesquisas?
Registro de início a atitude antidemocrática e constrangedora do governo [Fernando Henrique Cardoso]. Diante de um erro monumental de planejamento, injustificado em administração que dura há seis anos, o cidadão, vítima da trapalhada, não mereceu sequer um pedido de desculpa. Apesar disso, o povo tem colaborado de maneira extraordinária, por medo ou espírito público. Quanto à corrupção, não creio que haja mais dela hoje do que antes. Violência e corrupção são endêmicas no País há 500 anos, são o nosso feijão com arroz social. A novidade é que está havendo mais denúncia e investigação dos grandes ladrões-políticos, juízes, empresários – em parte graças à melhoria na atuação do Ministério Público. É humilhante para o brasileiro, mas é um passo à frente para o cidadão.
Para o senhor, o grande número de partidos políticos é resultado da conquista de direitos políticos. A reforma política é realmente necessária?
O grande número de partidos é resultado de leis eleitorais e partidárias. Em si, o fenômeno não é mais nem menos democrático. Reformas políticas podem aperfeiçoar o sistema representativo, mas não creio que possam ir muito longe na direção de tornar o sistema mais sensível ao drama social do país, pelo menos a curto prazo. Acredito mais em reformas de instituições, como a polícia e a Justiça, em descentralização política e administrativa e, sobretudo, na ação dos de baixo cobrando diretamente responsabilidade dos de cima, com o uso de todo tipo possível de instrumentos de pressão. O paternalismo e o clientelismo não bastam, representação formal não bastará.
Publicado originalmente pelo jornal O Estado de S. Paulo em 15/07/2001